A coxa de Yaaqov

24/09/2012 20:38

A coxa de Ya’aqóv. Bereshit. 32:24,25.

I – Introdução

Alguns podem se questionar o porquê de um tema aparentemente pouco importante merecer estudos mais profundos. Porém, há uma importância prática neste tema que vai muito além do que pode parecer à primeira vista.

Por conta do entendimento rabínico tradicional acerca da Kashrut, isto é, das leis alimentícias das Escrituras, muitas pessoas se abstêm de comerem a parte traseira do boi, devido à proibição que diz respeito ao nervo ciático. Isso na prática significa que tais pessoas ficam impedidas de comer alimentos tais como picanha e filet mignon (já que nos açougues não se remove tal nervo), o que não apenas pode ser individualmente desconfortável, como ainda pode contribuir para dificultar a participação em eventos sociais e familiares.

Quem procura manter uma dieta bíblica sabe o quanto pode ser delicado praticá-la, especialmente quando a família não compartilha das mesmas crenças, ou quando se é forçado a comer fora. Mas, claro, procura-se fazer isso por amor e obediência ao Eterno. Sendo assim, é de fundamental importância esclarecer-se a questão do nervo ciático, e portanto na prática das carnes traseiras. Principalmente porque somente nos açougues sefaradim, que praticam o costume de Kashrut conhecido como Beit Yossef, o nervo ciático é removido para que a carne traseira seja consumida. Nos açougues ashkenazim, evita-se a região traseira por completo. Todavia, não existem muitos açougues sefaradim no Brasil, visto que a maior parte da comunidade judaica (pelo menos, a oficialmente reconhecida) é de origem ashkenazi.

Portanto, este material se proporá a responder a essa pergunta, analisando a questão a partir de dois ângulos: a passagem de fato se refere ao nervo ciático? E ainda: Há mesmo uma proibição bíblica quanto ao seu consumo, ou trata-se apenas de uma tradição?

Nesta primeira parte, será feita uma análise linguística e contextual das Escrituras.

 

II - O Texto

O texto que é tomado por base para a suposta proibição é o texto de Bereshit/ Gênesis 32:24-25,31-32, que diz: “Ya’akov (Jacó), porém, ficou só; e lutou com ele um homem, até que a alva subiu. E vendo este que não prevalecia contra ele, tocou a juntura [chaf] de sua coxa [yerecho], e se deslocou a juntura [kaf] da coxa [yerech] de Yaʼakov, lutando com ele... E saiu-lhe o sol, quando passou a Peniel; e manquejava da sua coxa [yerecho]...” Por isso os filhos de Israel não comem o nervo encolhido [guid hanasheh], que está sobre a juntura [chaf] da coxa [yerech], até o dia de hoje; porquanto tocara a juntura da coxa de Jacó no nervo encolhido.

Para compreendê-lo da melhor forma, é importante analisar os principais termos (yerech, guid, nasheh e kaf), em sua forma hebraica, para se chegar a uma conclusão.

III – Yerech

Frequentemente nas Escrituras o termo yerech (ךרי), normalmente traduzido como “coxa”, é usado para se referir aos genitais de uma pessoa. Abaixo, alguns exemplos:

Todas as almas que vieram com Ya’akov para o Egito e que saíram da sua coxa [yerecho], fora as mulheres dos filhos de Ya’akov, eram todas sessenta e seis almas”. (Bereshit/Gênesis 46:24)

Todas as almas, pois, que procederam da coxa [yerech] de Ya’akov, foram setenta; Ya’akov, porém, já estava no Egito”. (Êxodo/Shemot 1:5).

Essa referência é aplicável tanto a homens quanto a mulheres, uma vez que de acordo com Bamidbar/Números, a mulher que é pega em ato de infidelidade conjugal recebe maldição exatamente sobre a sua fertilidade, na Torá descrita como “o ventre e a coxa”:

Mas se te desviaste, violando o voto conjugal, e te contaminaste, e algum homem que não é teu marido se deitou contigo,- então o sacerdote, fazendo que a mulher tome o juramento de maldição, lhe dirá: YHWH te ponha por maldição e praga no meio do teu povo, fazendo-te YHWH consumir-se a tua coxa [yerechech] e inchar o teu ventre”. (Bamidbar/Números 5:20-21).

Algumas traduções, como a NVI, trazem algo como: “que o Senhor faça de você objeto de maldição e de desprezo no meio do povo fazendo que a sua barriga inche e que você jamais tenha filhos.” Isso porque, de fato, na cultura israelita antiga uma mulher que não pudesse ter filhos, que tivesse a “coxa consumida”, era tida como uma desafortunada e, muitas vezes, uma pessoa amaldiçoada, visto que a mulher dependia de sua descendência para que pudesse sobreviver.

É também praticamente consenso entre comentaristas, tanto judeus quanto cristãos, que o juramento colocando a mão na coxa referia-se a uma prática que, embora hoje em dia pudesse ser vista como tabu, era comum naquela época: A de jurar tocando a circuncisão, que era o objeto da aliança com o povo. Observa-se isso em dois lugares na Torá:

E disse Avraham ao seu servo, o mais velho da casa, que tinha o governo sobre tudo o que possuía: Põe agora a tua mão debaixo da minha coxa [yerechi], para que eu te faça jurar por YHWH Elohim dos céus e Elohim da terra, que não tomarás para meu filho mulher das filhas dos cananeus, no meio dos quais eu habito”. (Bereshit/Gênesis 24:2-3)

Chegando-se, pois, o tempo da morte de Israel, chamou a Yossef, seu filho, e disse-lhe: Se agora tenho achado graça em teus olhos, rogo-te que ponhas a tua mão debaixo da minha coxa [yerechi], e usa comigo de beneficência e verdade; rogo-te que não me enterres no Egito”. (Bereshit/Gênesis 47:29)

Pode-se perceber que o texto bíblico faz muitas referências à coxa como eufemismo para os genitais. Porém, existe também o uso literal, como pode ser visto nos dois exemplos abaixo:

E Ehud fez para si uma espada de dois fios, do comprimento de um côvado; e cingiu-a por baixo das suas vestes, à sua coxa [yerech] direita.” (Shoftim/Juízes 3:16)

Cinge a tua espada à coxa [yarech], ó valente, com a tua glória e a tua majestade”. (Tehilim/Salmos 45:3)

Poucas são as passagens nas quais o termo yerech (ךרי) é usado, e a maioria delas é inconclusiva quanto à parte do corpo a que se refere. Se forem consideradas apenas as passagens onde a referência é clara, há mais ou menos um número equivalente de instâncias que se referem à região genital, e passagens que se referem claramente à coxa propriamente dita. Portanto, pode-se compreender perfeitamente que a coxa pode ser um eufemismo para a região genital.

IV - Guid

O termo guid (דיג), traduzido como tendão, é pouco utilizado nas Escrituras - normalmente em linguagem poética e no plural, para se referir a todos os tendões e/ou músculos do corpo:

De pele e carne me vestiste, e de ossos e nervos [guidim] me teceste”. (Iyov/Jó 10:11)

Quando quer, move a sua cauda como cedro; os nervos [guidei] das suas coxas [fachadav] estão entretecidos”. (Iyov/Jó 40:17)

À primeira vista, a passagem acima parece promissora, dada a presença de “nervo” e “coxa” na mesma frase, no português. Essa coincidência, contudo, é apenas ilusória, pois o termo no hebraico aqui traduzido como coxa é pachad (דחפ), não (ךרי), termo usado em Bereshit (Gênesis).

Existe também bastante coisa interessante a respeito desse termo e algumas controvérsias, porém essa questão não será abordada aqui, por uma questão de foco.

E porei nervos [guidim] sobre vós e farei crescer carne sobre vós, e sobre vós estenderei pele, e porei em vós o espírito, e vivereis, e sabereis que eu sou YHWH. Então profetizei como se me deu ordem. E houve um ruído, enquanto eu profetizava; e eis que se fez um rebuliço, e os ossos se achegaram, cada osso ao seu osso. E olhei, e eis que vieram nervos [guidim] sobre eles, e cresceu a carne, e estendeu-se a pele sobre eles por cima; mas não havia neles espírito”. (Yehezkel/Ezequiel 37:6-8)

A única passagem que faz clara referência a uma parte específica do corpo é a de Yeshayahu (Isaías), que diz:

Porque eu sabia que eras duro, e a tua cerviz um nervo (guid) de ferro, e a tua testa de bronze”. (Yeshayahu/Isaías 48:4)

Evidentemente que o uso supracitado não se refere à mesma parte do corpo que o texto de Ya’akov (Jacó). Mas, duas coisas podem ser aprendidas a partir dele: A primeira é a de que aqui claramente o termo guid se refere à musculatura. E a segunda é que o termo, a exemplo de como é usado no plural nas demais passagens, é genérico e pode ser aplicado a qualquer parte do corpo. Porém, uma informação bastante interessante sobre o termo guid é que o termo também existe no aramaico, que é uma língua muitas vezes semelhante ao hebraico.

No aramaico, de acordo com o léxico do acadêmico Stephen Kaufman, professor da Hebrew Union College, o termo “guid” também pode ser uma referência ao genital masculino. É possível, portanto, que no hebraico o termo também assuma conotação semelhante.

V – Nasheh

O próximo termo a ser analisado é o termo “nasheh” (השנ), que é traduzido na maioria das vezes como “encolhido.” Novamente, trata-se de um termo pouco comum no hebraico, e que é objeto de algumas teorias. A tradução “encolhido” sugere que o termo “nasheh” venha da raiz “anash” (שנא), número 605 na concordância Strong, que pode tanto significar falho, enfermo ou incurável. Abaixo, um exemplo:

Então Natan foi para sua casa; e YHWH feriu a criança que a mulher de Uriyah dera a David, e adoeceu gravemente [vaye’anash]”. (Sh’muel Beit/2 Samuel 12:15)

Porém, essa não é a única possibilidade. Essa mesma raiz pode ser lida como “enash” (שנא), número 606 na concordância Strong, que é a forma mais antiga da palavra “homem”. Ela aparece em algumas passagens, tais como:

Também por mim se decreta que todo o homem [enash] que mudar este decreto, se arrancará um madeiro da sua casa, e, levantado, o pendurarão nele, e da sua casa se fará por isso um monturo”. (Ezra/Esdras 6:11)

Portanto, há duas possibilidades para o termo “nasheh”. A primeira possibilidade é a de que ele signifique “adoecido” ou “fragilizado”. A segunda possibilidade é que ele signifique “masculino”. Ou seja, a expressão “guid hanasheh” poderia tanto ser entendida como “tendão fragilizado” como ainda como “órgão masculino”, ou ainda uma combinação das duas coisas, significando algo como “genital ferido”.

VI – Kaf

A última palavra a ser observada é o termo kaf (ףכ). Esse é talvez o mais difícil, pois é usado nas Escrituras para se referir a inúmeras coisas. O termo Kaf significa algo oco, ou com formato côncavo, como o de uma concha. Abaixo, alguns exemplos disso:

E fez tornar o copeiro-mor ao seu ofício de copeiro, e este deu o copo na mão [kaf] de Faraó”. (Bereshit/Gênesis 40:21)

E apresentou a oferta de cereais e, tomando dela um punhado [chapo], queimou-o sobre o altar, além do holocausto da manhã”. (Vayicrá/Levítico 9:17)

Aparentemente o termo kaf é usado para se referir à mão que pega algo, e que de fato toma uma forma de algo côncavo, ou de um receptáculo, como acontece em um punhado.

No primeiro dia tomareis para vós o fruto de árvores formosas, folhas [kapot] de palmeiras, ramos de árvores frondosas e salgueiros de ribeiras; e vos alegrareis perante YHWH vosso Elohim por sete dias”. (Vayicrá/Levítico 23:40)

Algumas traduções trazem também “ramos”. A palmeira tem exatamente os ramos e as folhas em um formato côncavo. É provável que a referência se refira a isso.

uma colher [kaf] de ouro de dez ciclos, cheia de incenso”. (Bamidbar/Números 7:38)

A idéia aqui é de um receptáculo côncavo, algo que possa acomodar uma medida. É traduzida liberalmente como colher.

Igualmente, quanto à mulher mais mimosa e delicada no meio de ti, que de mimo e delicadeza nunca tentou pôr a planta [chaf] de seu pé sobre a terra, será mesquinho o seu olho para com o homem de seu regaço, para com seu filho, e para com sua filha”. (Devarim/Deuteronômio 28:56)

Mais uma vez a idéia é de algo côncavo. Possivelmente uma referência à parte côncava da sola do pé. Ou seja, no que diz respeito ao texto de Ya’akov (Jacó), pode se referir a duas coisas. Supondo que guid hanasheh se refira ao nervo ciático, kaf poderia ser uma referência à região da bacia, onde o nervo se encaixa, que é uma região côncava. Alternativamente, se o termo guid hanasheh se referir ao órgão genital, então kaf caberia muito bem como uma referência à bolsa testicular, que tem exatamente esse formato, além da função de ser um receptáculo para os testículos.

VII - Observação sobre os termos

Observe o quadro abaixo:

 

Será coincidência que as quatro principais palavras-chaves para o entendimento desse versículo podem ser referências ao sistema reprodutor masculino? Há diversos teólogos que acreditam que não. Como exemplo, temos o teólogo e professor de Bíblia e teologia do Asbury College, Victor P. Halmiton, que em sua obra “New International Commentary of the Old Testament” afirma acerca da expressão “guid hanashe”: “A origem e o significado da palavra hebraica nasheh são mais difíceis de determinar do que guid. O primeiro ocorre apenas aqui na Bíblia Hebraica. Geverty sugere que nasheh estava associado ao acido nishu, "povo", "vida"; ugárico nsh, "homem"; e o hebraico enosh, "homem." Assim, a expressão guid hanasheh denota o membro viril, o "tendão masculino', o "tendão que produz vida", e o tabu com relação à comida no verso 32 tem referências específicas aos genitais masculinos.” (The Book of Genesis Chapters 18-50)

E ainda, acerca de kaf:

“Uma vez que kaf tem a conotação de algo oco (como um vaso ou panela ou bolsa) e yarech pode ter significado de genitais, é possível que a frase kaf yerecho se refira ao escroto, a bolsa oca que segura os testículos, ao invés do soquete do quadril. Assim, a situação seria a de que dois homens estão engajados em combate, e em algum momento na disputa um combatente toca/golpeia o escroto do outro combatente. Esta situação seria então comparável à que é contemplada na lei de Deuteronômio 25:11-12, na qual dois homens estão lutando. A mulher do que está ganhando deixa o vencedor em desvantagem ao 'e lhe pegar pelas suas vergonhas." (ibid)

No Judaísmo, essa noção também não era desconhecida. O rabino Abraham Ibn Ezra, famoso comentarista rabínico da Torá no século 11, afirma o seguinte a esse respeito: "O significado do termo guid hanasheh… é conhecido da tradição recebida e transmitida a nós pelos sábios talmúdicos. Ninguém, exceto pelos que não têm entendimento e conhecimento da natureza têm qualquer dúvida quanto à sua definição. Os últimos interpretam que guid (nervo) se refere ao pênis e que nasheh (veia da coxa) vem da mesma raiz de nashim (mulheres)" (Comentário de Gênesis 32:33)

Ibn Ezra se posiciona claramente de forma contrária a essa interpretação, mas o mais interessante nesse comentário é a menção a outros que acreditavam exatamente como alguns teólogos aqui propõem: que o termo se refira ao órgão reprodutor masculino. Ou seja, mesmo no Judaísmo Rabínico já bastante consolidado da Idade Média, ainda assim havia essa visão. E, certamente, pelo texto bíblico, ela é possível.

VIII - Revisitando a Passagem

Como ficaria, portanto, desse ponto de vista de que guid hanasheh se refira ao órgão genital, a passagem da luta entre Ya’akov (Jacó) e o anjo? Abaixo, uma demonstração:

“Ya’akov, porém, ficou só; e lutou com ele um homem, até que a alva subiu. E vendo este que não prevalecia contra ele, golpeou o escroto, e se rasgou o escroto de Ya’akov, lutando com ele... E saiu-lhe o sol, quando passou a Peniel; e manquejava em razão de seu escroto. Por isso os filhos de Israel não comem o genital, adjacente ao escroto, até o dia de hoje; porquanto golpeara o escroto de Ya’akov, junto ao seu genital”.

Convém aqui esclarecer, especialmente às mulheres (devido à diferença anatômica), que um forte golpe na região genital de um homem não só pode como provavelmente o fará manquejar. Inclusive, um dos possíveis sintomas para problemas na próstata, tanto de homens quando de animais, é exatamente o manquejar, possivelmente devido à dor causada. Sendo assim, o fato de Ya’akov (Jacó) manquejar não pode, por si só, sugerir uma resposta para a indagação de a que se refere a expressão guid hanasheh.

IX – Conclusão

É impossível determinar com total certeza a que porção anatômica se refere a expressão guid hanasheh. Tanto a leitura literal quanto a leitura eufêmica são possíveis. Ambas ocorrem nas Escrituras em alguns lugares. Sendo assim, qualquer das duas visões seria possível de se enquadrar no texto bíblico. Isto posto, o autor deste material é da opinião de que há referências demais que podem se referir à anatomia do sistema reprodutor masculino para que se considere isso uma coincidência, e é portanto da opinião de que de fato o termo se refira aos órgãos genitais.

Além disso, diversos personagens bíblicos já foram golpeados e feridos em outras regiões. Por que somente no caso de Ya’akov (Jacó) a questão se tornou um tabu? A região onde o golpe foi desferido poderia explicar essa questão, visto que é bastante compreensível que tal região desse origem a um tabu.

Adaptado. Moreh Yossef Ben Shalom


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